quinta-feira, 22 de abril de 2010

Centro comercial recém-inaugurado revela-se inimigo de ciclistas e pedestres

Reproduzimos aqui no blog texto produzido pelo nosso amigo Uirá Lourenço, cicloativista que sempre nos envia muitos informações legais pertinentes ao cicloativismo. O texto é de 7 de abril de 2010, e fala sobre a triste realidade que o novo shopping Iguatemi traz para ciclistas e pedestres de Brasília.

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No dia 31 de março, pedalei pela via do Lago Norte (Estrada Parque Península Norte, DF-009) até o Iguatemi, inaugurado no dia anterior. Apesar da distância curta (cerca de quatro quilômetros de onde eu estava), o trajeto não foi dos mais fáceis e não recomendo a ciclistas sem experiência no trânsito selvagem do dia a dia.

Saí do final da Asa Norte (próximo aos supermercados Extra e Carrefour), peguei parte do Eixão Norte, ponte do Bragueto e, então, a via de acesso ao Lago Norte. Em nenhum momento, pude desfrutar de qualquer facilidade ao ciclista (ciclofaixa, ciclovia nem calçada compartilhada).

Na chegada ao shopping, a primeira surpresa: o acesso de pedestre não está pronto. Contornei o terreno e avistei o estacionamento. A placa próxima à entrada sinalizava para carros (“valet”) e motos.

Acesso de pedestre em construção

Sinalização para usuários de moto e carro

Um ser de bicicleta deveria ir para que lado? Entrei no primeiro acesso ao shopping e avistei um rapaz. O diálogo com o funcionário responsável pelo acesso ao estacionamento foi emblemático:

Eu: Boa noite. Vou ao shopping. Tem vaga para estacionar minha bicicleta?

Funcionário: Aqui nessa parte não tem.

Eu: Então, onde posso parar?

Funcionário: Essa área é a internacional. Não tem lugar pra bicicleta.

Eu: Internacional, como assim?

Funcionário: É, por causa da Luis Vuiton. É área de acesso à loja.

Eu: Se não tem vaga na área internacional, onde posso parar?

Funcionário: Dá a volta e vê se tem na outra parte.

Pedalei até a outra parte do estacionamento. Procurei vagas para bicicletas, mas não as encontrei. Decidi voltar para a entrada e conversar, novamente, com o funcionário do shopping. Antes de encontrá-lo, avistei uma placa na entrada do estacionamento internacional e desisti de ter outro diálogo, afinal a placa é muito clara: bicicletas não são bem-vindas.

No acesso ao Iguatemi, a sinalização indica a proibição de acesso de bicicletas

A administração do Iguatemi deve imaginar que usuários de bicicleta não tenham condições de consumir nas lojas de grifes internacionais. Esquecem-se que, por razões ambientalistas, urbanísticas e até por moda, o uso de bicicleta tem sido promovido em cidades de diversos países.

Não precisa recorrer a exemplos do exterior para constatar que o acesso a lojas pode ser mais democrático, de forma a possibilitar o acesso de ciclistas. Aqui na capital federal, o Conjunto Nacional dispõe, há mais de um ano, de vagas gratuitas e cobertas para bicicletas. Foi feita, inclusive, campanha de estímulo ao uso de bicicleta.

Bicicletário coberto e gratuito do Conjunto Nacional

Considerando que o Iguatemi foi construído pela construtora do empresário e ex-governador Paulo Octávio e que o GDF prioriza os modos de transporte coletivo e não motorizado, segundo o discurso repetido em eventos e divulgado em anúncios publicitários, era de se esperar que fossem reservadas vagas gratuitas e cobertas para os usuários de bicicleta.

Infelizmente, a área internacional do Iguatemi não teve como inspiração a Holanda ou Dinamarca, países que notadamente incentivam o uso de bicicleta.

Acostamentos cicláveis e criação de terceira faixa para carros

Não bastasse a proibição de acesso ao shopping, o ciclista enfrenta dificuldades ao trafegar na via que passa pelo Lago Norte, a Estrada Parque Península Norte (EPPN), DF-009.

O chamado acostamento ciclável (nome dado pelo governo ao espaço reservado aos ciclistas nos acostamentos de algumas vias) só começa a cerca de 500 metros do shopping e não segue até o final do Eixão Norte (DF-002). Em frente ao centro comercial não existe sequer o acostamento “normal”. Apesar de o governo qualificar como ciclável o espaço no Lago Norte, o código de trânsito já prevê a circulação de bicicletas no acostamento, sem necessidade de qualquer obra: “acostamento - parte da via diferenciada da pista de rolamento destinada à parada ou estacionamento de veículos, em caso de emergência, e à circulação de pedestres e bicicletas, quando não houver local apropriado para esse fim”.

O acostamento que existia no Lago Norte cedeu espaço para a terceira faixa de circulação de carros, do shopping Deck Norte até a ligação com o final do Eixão.

Em ambos os lados da via, o acostamento virou terceira faixa para carros

Os ciclistas que passam pelo Lago Norte enfrentam outras dificuldades. A imprudência e o excesso de velocidade dos motoristas são facilmente observados. Em meia hora, mais de vinte carros invadiram o acostamento. O limite teórico de velocidade na via é alto – 70 km/h – e dificulta a convivência entre ciclistas e motoristas, especialmente nos locais sem acostamento. É fácil constatar que, apesar de alto, o limite de velocidade não é respeitado por muitos motoristas.

Limite de velocidade de 70 km/h ao longo da EPPN

Ao eliminar o acostamento na via do Lago Norte e criar a terceira faixa, o governo local faz uma escolha bem clara: põe em risco a vida de ciclistas para oferecer maior fluidez aos motoristas. Apenas neste ano, pelo menos seis pessoas já morreram em vias do Distrito Federal enquanto pedalavam, quatro apenas no mês de março. Os dados têm como fonte notícias divulgadas pela mídia local, pois os dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) estão desatualizados e vão até o mês de dezembro de 2009. Os números de mortes nas vias do DF até março de 2010 não estão disponíveis no sítio de internet nem na assessoria de comunicação do órgão de trânsito.

Apesar das mortes e dos ferimentos frequentes de ciclistas, decorrentes da falta de condições propícias às pedaladas, o órgão de trânsito não possui campanha voltada especificamente ao uso da bicicleta como meio de transporte. “Não tem nada voltado ao ciclista, não temos ação prevista. No momento, estamos focados no pedestre, em função do aniversário da campanha da faixa de pedestre”, afirma Maria da Penha, assessora de comunicação do Detran-DF.

A sinalização dos acostamentos cicláveis do Lago Norte está incompleta e não corresponde ao previsto no projeto inicial. Segundo o informativo do Pedala-DF distribuído em março de 2009, os pontos de conflito entre ciclistas e motoristas estariam destacados com pintura vermelha.

O gerente do Programa Cicloviário do Distrito Federal (Pedala-DF), Leonardo Firme, foi procurado por e-mail. Foram enviadas perguntas sobre as condições de segurança aos ciclistas na via que passa pelo Lago Norte. No entanto, não houve respostas.

Em pontos de ônibus e acessos a quadras (pontos de conflito), falta pintura vermelha no asfalto

Segundo o material informativo do Pedala-DF, distribuído em março de 2009, os acostamentos do Lago Sul e do Lago Norte possuem marcação vermelha nas zonas compartilhadas com automóveis e ônibus

O discurso do GDF de priorização do transporte não motorizado e o fato de haver uma gerência (Pedala-DF) apenas para tratar da mobilidade por bicicleta não resistem a uma breve caminhada pela cidade. É fácil constatar que pedalar e caminhar em Brasília, mesmo na área central, são tarefas árduas. A mega-frota motorizada (segundo o Detran-DF , a frota já chega a 1 milhão e 162 mil carros) ganha mais espaço por meio das diversas obras viárias projetadas e em execução. A prioridade ao automóvel que ocorre na prática contraria diversas leis em vigência no Distrito Federal, inclusive a Lei Orgânica, que preveem justamente a prioridade ao transporte não motorizado (confira abaixo).

A meta inicial de 600 km de ciclovias, que seriam entregues até 2010, certamente não será alcançada. E o Plano Piloto, que concentra a maioria dos empregos e dos deslocamentos diários, ainda se caracteriza pelas vias expressas e pela carência de vias e segurança para ciclistas. O projeto do governo que pretende disponibilizar estações para aluguel de bicicletas, previsto inicialmente para o ano passado, também não saiu do papel.

Legislação pró-ciclista

Em tramitação na Câmara Legislativa do Distrito Federal, o projeto de lei nº 2103/2005 pretende obrigar a instalação de bicicletários (locais com vagas de estacionamento para bicicletas) em lojas, supermercados e centros comerciais. O projeto já passou por análise nas comissões permanentes e aguarda aprovação dos deputados em plenário.

Já em vigência, a lei distrital nº 4.397/2009 criou o sistema cicloviário do Distrito Federal e prevê incentivos ao uso da bicicleta. No artigo segundo, a lei afirma que o sistema será composto por dois itens: rede viária para o transporte por bicicletas, formada por ciclovias, ciclofaixas, faixas compartilhadas e rotas operacionais de ciclismo; locais específicos para estacionamento: bicicletários e paraciclos.

Outras leis distritais que estimulam o uso da bicicleta podem ser citadas: Lei n° 3.639/2005, que impõe a criação de ciclovia em rodovias; Lei n° 3.721/2005, que institui oficialmente a Jornada Na Cidade sem Meu Carro e o Dia da Mobilidade e Acessibilidade em favor do uso da bicicleta; Lei n° 3.885/2006, que assegura a política de mobilidade urbana de incentivo ao uso da bicicleta; Lei n° 4.030/2007, que cria o Dia do Ciclista (26 de outubro) e prevê a realização de eventos, como debates e palestras, com o objetivo de difundir o uso da bicicleta; Lei n° 4.216/2008, que permite o transporte de bicicleta no metrô.

De forma semelhante, nossa Lei Maior, a Lei Orgânica do Distrito Federal, prevê a priorização do transporte não motorizado. O capítulo sobre transporte (artigo 335, parágrafo segundo) estabelece: “O Poder Público estimulará o uso de veículos não poluentes e que viabilizam a economia energética, mediante campanhas educativas e construção de ciclovias em todo o seu território.”

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